terça-feira, 15 de maio de 2012

Alberto Caeiro


       O Pastor Amoroso
                   
            O pastor amoroso perdeu o cajado, 
                    E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta, 
                    E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe pira tocar. 
                    Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. 
                    Nunca mais encontrou o cajado. 
                    Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas. 
                    Ninguém o tinha amado, afinal. 
                    Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo: 
                    Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre, 
                    As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, 
                    A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, 
                    estão presentes. 
                    (E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco 
                    nos pulmões) 
                    E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, 
                    uma liberdade 
                    no peito. 




 "Poema Décimo"

"Olá, guardador de rebanhos, 
Aí à beira da estrada, 
Que te diz o vento que passa?"

"Que é vento, e que passa, 
E que já passou antes, 
E que passará depois. 
E a ti o que te diz?"

"Muita cousa mais do que isso. 
Fala-me de muitas outras cousas. 
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."

"Nunca ouviste passar o vento. 
O vento só fala do vento. 
O que lhe ouviste foi mentira, 
E a mentira está em ti."


Este poema constrói-se como um dialogo entre o sujeito poético (“guardador de rebanhos”) e um outro que com ele se cruza no caminho (“Aí a beira da estrada”) e que o interpela sobre o significado do vento (vento é símbolo do real). Este diálogo é um processo que permite apresentar dois pontos de vista, diferentes a dois níveis:
· Primeiro, para o sujeito poético, a relação com a realidade passa por sentir apenas essa realidade, sem a pensar ou imaginar; para o seu interlocutor, a realidade é muito mais do que aquilo que se sente, pois é também porta aberta para a memória, a saudade e o sonho;
· Segundo, para o sujeito poético só existe a verdade do momento, do presente; para o seu interlocutor, o presente conduz á memória do passado e a imaginação do futuro.
Pode estabelecer-se uma clara relação entre os pontos de vista assumidos pelas duas personagens com os traços que caracterizam Alberto Caeiro e Fernando Pessoa ortónimo - neste poema, Alberto Caeiro apresenta-se como negação do ponto de vista do ortónimo: “a mentira está em ti”.




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