O Pastor Amoroso
O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe pira tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem,
estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco
nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor,
uma liberdade
no peito.
"Poema Décimo"
"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"
"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."
Este poema constrói-se como um dialogo entre o sujeito poético (“guardador de rebanhos”) e um outro que com ele se cruza no caminho (“Aí a beira da estrada”) e que o interpela sobre o significado do vento (vento é símbolo do real). Este diálogo é um processo que permite apresentar dois pontos de vista, diferentes a dois níveis:
· Primeiro, para o sujeito poético, a relação com a
realidade passa por sentir apenas essa realidade, sem a pensar ou imaginar;
para o seu interlocutor, a realidade é muito mais do que aquilo que se sente,
pois é também porta aberta para a memória, a saudade e o sonho;
· Segundo, para o sujeito poético só existe a verdade do
momento, do presente; para o seu interlocutor, o presente conduz á memória do
passado e a imaginação do futuro.
Pode estabelecer-se uma clara relação entre os pontos de
vista assumidos pelas duas personagens com os traços que caracterizam Alberto
Caeiro e Fernando Pessoa ortónimo - neste poema, Alberto Caeiro apresenta-se
como negação do ponto de vista do ortónimo: “a mentira está em ti”.
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