Com o tema da censura a ser suscitado por
aí, falemos do tempo em que ela existia.
A censura, no tempo do Estado Novo, era uma atividade que o regime tinha colocado nas mãos dos militares. Em Lisboa, eram famosos os "coronéis" que, dia-a-dia, se dedicavam a assinalar, a lápis azul, aquilo que, nos textos da imprensa, entendiam como podendo ofender os seus mestres ou os costumes oficialmente protegidos.
A censura, no tempo do Estado Novo, era uma atividade que o regime tinha colocado nas mãos dos militares. Em Lisboa, eram famosos os "coronéis" que, dia-a-dia, se dedicavam a assinalar, a lápis azul, aquilo que, nos textos da imprensa, entendiam como podendo ofender os seus mestres ou os costumes oficialmente protegidos.
Na província, a "Comissão de
Censura" (depois, com Marcelo Caetano, passou ao eufemismo de "Exame
Prévio") tinha também os seus militares. Em Vila Real, era o velho
capitão Medeiros.
No final dos anos 60, já na universidade,
comecei a publicar alguns artigos em "A Voz de Trás-os-Montes", um
jornal local ligado à diocese, que ainda existe. Iniciei-me na escrita
desportiva mas, na "primavera marcelista", ousei entrar pela política
interna. Os textos eram muito rebuscados, cheios de duplas leituras, só
acessíveis a alguns "happy few", um pouco à moda do que então lia no
"Diário de Lisboa", no "República" ou na "Seara
Nova". Agora, ao revê-los, fica patente a sua total inocuidade, garantida
pelo reduzidíssimo número de potenciais leitores, afastados pelo caráter quase
impenetrável da escrita.
Por uma ou duas vezes, o capitão Medeiros
ironizou com o meu Pai sobre as minhas "ideias avançadas", expressão
para designar tendências esquerdistas que pressentia nas entrelinhas. Ao
diretor do jornal, o padre Henrique Maria dos Santos, o nosso censor local
passou também algumas mensagens de aviso, no sentido de eu me "deixar de
espertezas". Lá fui, contudo, continuando a escrever, com algum cuidado
mas sempre sem grandes obstáculos. Aliás, o capitão Medeiros deve ter ficado
menos preocupado quando, a partir de certa altura, passei a dedicar-me apenas a
temas de política internacional. Até um dia!
O tema era a Rodésia e eu analisava os
problemas entre o Reino Unido e o independentismo branco de Ian Smith, bem como
as polémicas entre a ZAPU e a ZANU. O texto era algo hermético, com muitos e
dispensáveis detalhes, que eu tinha bebido na imprensa internacional. (Com os
diabos! Só temos 20 anos uma vez!)
Uma tarde, o capitão Medeiros encontrou o meu Pai na rua Direita, esse eixo de Vila Real, e deu-lhe os parabéns: "Parece que o seu filho está a entrar no bom caminho! Escreveu um bom artigo sobre a Rodésia!". O meu Pai, que ainda não tinha lido o texto, conhecendo-me bem, estranhou, mas agradeceu o elogio.
Uma tarde, o capitão Medeiros encontrou o meu Pai na rua Direita, esse eixo de Vila Real, e deu-lhe os parabéns: "Parece que o seu filho está a entrar no bom caminho! Escreveu um bom artigo sobre a Rodésia!". O meu Pai, que ainda não tinha lido o texto, conhecendo-me bem, estranhou, mas agradeceu o elogio.
Dias depois, o diretor do jornal, à porta
da Gomes (essa pastelaria mítica da cidade), disse-me: "O capitão Medeiros
está furioso. Afirma que você o enganou com o texto sobre a Rodésia. Levou uma
advertência dos serviços centrais da censura, em Lisboa. Já me disse que, por
este caminho, não o deixa publicar mais nada".
O que acontecera? O pobre do capitão Medeiros deixara-se "enrolar" nas minhas considerações e, em especial, permitira a última e fatal frase que eu incluíra no texto: "Ou muito me engano ou a Rodésia tem à sua frente um futuro negro".
O que acontecera? O pobre do capitão Medeiros deixara-se "enrolar" nas minhas considerações e, em especial, permitira a última e fatal frase que eu incluíra no texto: "Ou muito me engano ou a Rodésia tem à sua frente um futuro negro".
A quatro décadas de distância, eu estava
longe de imaginar que, por detrás da procurada ambiguidade da minha frase,
acabaria por residir uma triste e insuspeitada presciência...